Por que realizar tarefas manuais pode ser tão prazeroso e desafiador? Atividades como marcenaria, cozinhar, jardinagem, tricô ou consertar um aparelho eletrônico podem produzir um estado de espírito mais agradável: relaxado, livre de preocupações, mas focado e produtivo. Mas por que isso acontece?
Temos vários artigos online disponíveis propondo que o trabalho manual é benéfico para a saúde do metal porque pode "desacelerar" uma mente hiperativa. Talvez você pare de se preocupar com arrependimentos do passado ou preocupações com o futuro, e isso te permita viver no presente. Acredito que isso é parcialmente verdade – parte da mente que se envolve em coisas sem tanta utilidade parece "desligar" quando você realiza trabalhos manuais, e isso é ótimo. Mas também acho que esta explicação deixa algo de fora: a mente hiperativa "desliga-se" porque há outra parte da mente que se "liga", e é aquela que fica menos ativa na maior parte do tempo. É uma parte que controla o corpo e principalmente as mãos. Porque no ser humano existe uma estreita ligação entre mãos e mente.
Cognição e ação
Pensar e fazer são muitas vezes consideradas coisas muito distintas. O pensar acontece num domínio abstrato de conceitos, e o fazer (ação) acontece no mundo concreto. Mas essas funções estão inter-relacionadas, porque as nossas capacidades cognitivas são construídas sobre uma base de capacidades físicas.
O movimento coordenado solicita muita energia do cérebro, e nossos cérebros têm evoluído há bilhões de anos para melhorar nisso. Nossas habilidades cognitivas de nível superior só surgiram há relativamente pouco tempo, e os sistemas neurais que as permitem dependem de muito apoio dos sistemas mais antigos criados para o movimento. Segundo o neurocientista Oliver Sacks:
"Muito mais parte do cérebro é dedicada ao movimento do que à linguagem. A linguagem é apenas uma pequena coisa situada no topo deste enorme oceano de movimento."
A conexão entre pensar e fazer é mais óbvia quando aplicada às mãos.
"Agarrando" conceitos
A raiz latina da palavra “conceito” é derivada de palavras que significam “absorver” ou “agarrar com a mão”. Podemos ver a conexão também em inglês, pois falamos sobre a capacidade de “apreender” conceitos. Mas a apreensão de objetos vem primeiro, e isso é verdade tanto na escala de tempo evolutiva quanto na de desenvolvimento.
A destreza manual surgiu em nossos ancestrais primatas como uma forma de agarrar galhos de árvores, colher frutas, virá-las nas mãos para avaliar a maturação e, eventualmente, começar a fabricar ferramentas simples. A inteligência dos primatas é parcialmente explicada pelo facto de estas atividades exigirem um cérebro sofisticado. Aqui está uma citação do neurologista Frank Wilson em seu livro The Hand: How It Shapes the Brain, Language and Culture:
"Como não parece provável que a notável capacidade do cérebro para controlar movimentos refinados da mão tenha sido anterior à capacidade biomecânica da mão para realizar esses movimentos, ficamos com uma conclusão surpreendente, mas inevitável: foi a biomecânica da mão moderna que preparou o terreno para a criação da maquinaria neurológica necessária para apoiar uma série de comportamentos centrados no uso qualificado da mão. Se a mão não construiu literalmente o cérebro, é quase certo que forneceu o modelo estrutural em torno do qual um cérebro antigo construiu um novo sistema de controlo manual e um novo domínio corporal de experiência, cognição e vida imaginativa."
O mesmo processo de desenvolvimento é observado em bebês – eles manipulam objetos antes de conceitos e brincam com blocos antes de ideias. Em certo ponto não há diferença: o trabalho feito com as mãos implica trabalho com a mente. Os filósofos René Descartes e Immanuel Kant consideravam a mão o cérebro externo. Anaxágoras disse que os humanos se tornaram criaturas inteligentes por causa de suas mãos.
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Habilidades manuais e cérebros grandes
Por que o cérebro demanda tanta energia para realizarmos tarefas manuais? Manipular um objeto com habilidade requer exploração e experimentação constantes: um dedo se estende para fazer contato, recebe feedback sensorial, o cérebro interpreta seu significado, forma um mapa detalhado de detalhes relevantes sobre o objeto e, em seguida, ajusta imediatamente o movimento do dedo para iniciar um experimento ligeiramente diferente e assim por diante. Os movimentos de cada dedo individual precisam ser coordenados com os demais, que estão todos envolvidos em suas próprias atividades parcialmente independentes.
[CURIOSIDADE: a incrível inteligência dos polvos pode ter algo a ver com os elevados níveis de destreza nas suas “mãos” (tentáculos). Dois terços dos seus neurónios estão localizados nos tentáculos, fazendo com que os cientistas especulem que eles tenham nove cérebros.]
A extrema dificuldade de coordenar uma mão pode é claramente evidenciada observando a robótica. Embora os robôs possam agora caminhar em terrenos variados com certa habilidade, o progresso é muito mais lento no desenvolvimento de uma destreza manual geral. É por isso que temos robôs que podem aspirar o chão, mas não descarregar a máquina de lavar louça. Isso exigiria o domínio de um enorme “vocabulário” de diferentes configurações e movimentos potenciais das mãos. Damos como certa a nossa capacidade de agarrar e manipular taças de vinho, canetas, bolas e martelos, mas cada movimento requer uma gama de configurações diferentes.
Em tarefas manuais mais complexas, como tricô ou marcenaria, você precisa encadear longas sequências de diferentes movimentos das mãos nas combinações certas, nos momentos e ritmos certos. É quase como falar uma língua. Na verdade, o movimento da mão humana é tão complexo quanto a linguagem falada, e os sinais manuais provavelmente precederam a linguagem falada como meio de comunicação. Os cientistas que estudam o desenvolvimento infantil encontram muitas ligações estreitas entre o desenvolvimento das habilidades manuais, dos gestos manuais e da linguagem.
As escolas primárias tradicionalmente oferecem muita educação “prática”. Parte da justificativa para a escrita e o desenho à mão é que eles promovem o desenvolvimento cognitivo geral.
Estudos sobre artesanato e fluxo
Existem pesquisas (a maioria delas observacionais) que relatam que pessoas que se envolvem em atividades artísticas como tricô ou quilting descobrem que isso reduz o estresse, reduz a dor e a ansiedade, além de criar uma sensação geral de bem-estar.
Isso remete a algumas características do estado de fluxo (flow state), conceito desenvolvido pelo psicólogo Mihali Csíkszentmihályi. Flow (fluxo) é uma experiência de foco intenso e gratificante em uma atividade intrinsecamente motivadora. É amplamente considerado pelos psicólogos como um ingrediente chave para uma vida boa e significativa. O fluxo geralmente apresenta as seguintes características:
atenção e foco na atividade alvo
sensação de controle sobre a atividade
sensação de fusão com a atividade
redução da autoconsciência e consciência do tempo
alto nível de motivação intrínseca e recompensa
Que tipos de atividades tem maior potencial para oportunizar o fluxo? Exemplos clássicos seriam o surf, pintura, cozinhar ou dança. Mas o fluxo pode ser encontrado em quase todas as atividades, basta criar um ambiente propício a isso. Alguns fatores que podem contribuir para tornar essa experiência mais provável:
objetivos claros
feedback
nível ideal de desafio (não difícil o suficiente para ser excessivamente frustrante, não tão fácil que a concentração não seja necessária)
você se preocupa com o que está fazendo
você é hábil na atividade (isso aumenta a probabilidade de sentir uma sensação de controle, fusão com a atividade e altos níveis de recompensa)
É fácil ver como esses fatores estariam presentes enquanto você trabalha com as mãos na execução de habilidades complexas. Por isso, se você tem habilidades manuais, lembre-se de que usá-las em projetos de seu interesse é uma forma de gerar estados mentais benéficos e saudáveis.
De dentro para fora (de nossas cabeças)
Nós - humanos modernos - dirigimos cada vez mais a nossa atenção para mundos imaginários ou virtuais e menos para o mundo físico que nos rodeia. Isso não é ruim em sua totalidade – o pensamento abstrato pode trazer ideias que eventualmente tornarão o mundo físico um lugar melhor. Mas a questão é: seria saudável passarmos tanto tempo em nossas cabeças, alienados do que nos rodeia? Os caçadores-coletores certamente passaram parte do tempo analisando o que aconteceu ontem e se preocupando com o amanhã. Mas é mais provável que a atenção deles tenha permanecido no presente deles, no "aqui e agora". Na maioria das vezes, eles envolviam suas mentes em tarefas físicas, como coletar alimentos, fabricar ferramentas, cozinhar, fazer artesanato, etc.
Existem muitas práticas terapêuticas e religiosas diferentes que enfatizam a importância de permanecer presente e atento. O objetivo da meditação, por exemplo, é focar no aqui e agora, mas é difícil porque apenas sentar é uma tarefa monótona e chata, e a atenção naturalmente quer se desviar. Se você fizer algum trabalho com as mãos que seja suficientemente complexo e agradável, sua atenção será automaticamente atraída para um alvo no qual o cérebro foi projetado para focar. Talvez passar algum tempo envolvendo sua mente com esse tipo de atividade seja uma forma de recarregar as baterias do cérebro.
Já tinha parado para refletir nessa relação das nossas mãos com nossa mente e o desenvolvimento do nosso cérebro? Me conta aqui abaixo nos comentários sua opinião e se pratica alguma atividade que envolva trabalhos manuais de forma mais específica.
Até a próxima, galera! Abraço.
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